Categoria: Memórias do Contestado

Locais de Memória – lugares para resgatar a memória e histórias do Contestado

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Quanto mais temos acesso a histórias e memórias a respeito da Guerra – ou Conflito – do Contestado, parece que mais nos aproximamos da nossa verdadeira identidade. A partir das pesquisas, do cancioneiro popular, das experiências em sala de aula, descobrimos que há muita gente que, assim como nós, que estamos preparando a 2a Mostra Chica Pelega, têm realmente interesse em que isso se esclareça. 

Há locais que podem ser visitados, para quem quem sabe concebermos um registro material sobre  o que aconteceu. São vales, cachoeiras, estradas, campos. Tem muita memória guardada em museus, sítios arqueológicos, monumentos, documentos, fotos, até mesmo ferramentas utilizadas pelos agricultores da época, armamentos, e o trem, claro. A velha malha ferroviária não é mais a mesma, restaram poucos trechos onde ainda se pode fazer passeios – não mais viagens. Nós destacamos parte deste acervo que está disponível e muitas vezes passa batido, acaba fazendo parte do cenário das cidades e a gente sequer se dá conta que isso já foi parte de um conflito tão gigante. Se você conhece outros lugares, outras pessoas, tem outras memórias, deixe esta dica nos comentários! Vamos ampliar este conhecimento, reconstruir juntos esta história 🙂

Fonte: Portal de Turismo do Município de Irani

IRANI

O Combate do Irani foi a primeira batalha do Exército Nacional, forças de segurança de Paraná e Santa Catarina, jagunços, vaqueanos, contra os caboclos. Naquele lugar onde se deu o conflito, hoje  preserva-se o Sítio Histórico e Arqueológico do Contestado. Lá está também a Sepultura do Monge José Maria, morto em combate; o Cemitério do Contestado, o Museu Histórico Monge José Maria, além do Monumento do Contestado. Quem guarda esta memória é a Fundação Cultural Memória Viva do Contestado da Região do Irani. Há também atrações turísticas como trilhas ecológicas, o Cerro Agudo, a Cachoeira do Contestado, com uma queda d’água de 41 metros. Para visitar o Sítio e suas atrações, é preciso fazer agendamento prévio, pelo telefone (49) 3432-3200. 

Localização:
BR-153, km 64 – Banhado Grande, Irani – SC
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Museu Histórico e Antropológico da Região do Contestado
Fonte: Portal Turístico do Município de Caçador

Caçador é outro município que deve ser visitado pelos interessados no que aconteceu por essas terras que foram disputadas / contestadas pelos estados de Santa Catarina e Paraná entre os anos de 1912 e 1916. Lá se preservou a Estação Ferroviária daquele tempo, hoje o  Museu da Ferrovia, onde se pode conhecer uma Maria Fumaça, com dois vagões, além do Museu Histórico e Antropológico da Região do Contestado, com o maior acervo no Estado sobre este assunto. Documentos, fotografias e mapas da época, Materiais bélicos e utensílios indígenas – Xokleng, Kaingang. O Museu é aberto ao público, com entrada gratuita. De terça a sexta, ele funciona das 8h30 às 12h e das 13h30 às 18h. Aos sábados e domingos das 13h às 18h. Fica na Rua Getúlio Vargas, 100 – Centro. E o telefone para contato é o  (49) 3567-1582

CAÇADOR

Localização
R. Getúlio Vargas, 100 – Centro, Caçador – SC
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Museu da Cidade Santa do Taquaruçú
Fonte: Portal de Turismo do Município de Fraiburgo

FRAIBURGO 

O primeiro grupamento de messiânicos, “fanáticos”, como os chama a História oficial, foi o Reduto Taquarussu do Bonsucesso, que ficava na antiga Curitibanos. Hoje estas terras estão dentro dos limites do município de Fraiburgo. Nós preferimos nos referir a estes homens e mulheres chamando-os de caboclos e caboclas. Eram trabalhadores e trabalhadoras do campo ameaçados por jagunços que seriam expulsos das terras onde moravam, plantavam e colhiam sua subsistência porque não tinham um papel que lhes desse a propriedade de onde se encontravam. Esse foi o principal motivo de sua rebelião. 

No  Museu do Jagunço da Cidade Santa de Taquaruçu, que fica na Linha Taquaruçu de Cima, você encontra utensílios, cartas, fotos, que são registros da memória da nossa região, do nosso povo, da construção deste estado. Ele está aberto à visitação, de forma gratuita, de terça a sexta,  das 9h às 12h, e das 13h30 às 18h. Aos sábados,  das 9h às 12h e das 13h às 17h e aos domingos  das 14h às 17h. Contato pelo telefone (49) 3256-3000.

Localização
Linha Taquaruçu de Cima, Taquaruçú, Fraiburgo – SC
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Lebon
Em respeito à memória dos que combateram
Fonte: ACRACOM – Associação Catarinense de Rádios Comunitárias

LEBON RÉGIS

A partir da Lei Nº 17.466, assinada pelo governador Raimundo Colombo, em 2012, Lebon Régis passou a ser reconhecida como a “Cidade Coração do Contestado”. Neste local haviam crematórios onde se ocultavam os restos mortais das vítimas da Guerra do Contestado. De acordo com relatos do geógrafo e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Nilson Fraga, os corpos de caboclos e militares foram queimados em fornos de barro, com fogo de grimpa de araucária e nó-de-pinho. As vítimas eram jogadas em buracos feitos no chão de terra com muros de taipa e de pedra de mais ou menos um metro. Em 2000, pelo menos doze fornos de extermínios foram registrados em propriedades privadas sem a devida conservação e manutenção. Isso na comunidade de Perdizes, no interior de Lebon Régis. 

Crematório de Cadáveres das Perdizinhas

Serra da Boa Esperança – Lebon Régis

Localização:
Estr. Lebon – Lebon Régis, SC
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A Festa Cabocla resgata Santa Maria, o último reduto caboclo do Contestado
Imagem – Portal de Turismo do Município de Timbó Grande

TIMBÓ GRANDE

Naquele período, o local era conhecido também como Vale das Mortes. Hoje o resgate cultural acontece por meio da Festa cabocla, na Cachoeira, promovida pela Escola Municipal  CMEB Nossa Senhora Aparecida, desde 2007. Neste evento, são expostos  objetos caboclos, acontece também o Festival da Música Caipira (FEMUCA), tem também comidas típicas e Missa Cabocla. 

Timbó Grande localizou o Marco Histórico do Contestado, erguendo uma placa, 100 anos depois (2015), em homenagem a Adeodato, líder caboclo, que morreu em combate no final da guerra.

Marco Adeodato
Foto: Thyago Weingantner

Localização:
Rodovia SC340, Estrada Vaca Branca, S/N – Linha VB1, Timbó Grande – SC
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Como a resistência cabocla reagiu aos ataques nas terras contestadas

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Guerra do Contestado: entrevista com Jilson Souza

Neste artigo você vai saber mais sobre a disputa de território numa região entre o Paraná e Santa Catarina e que até hoje repercute seus efeitos. 

Após a realização da I Jornada Cabocla Chica Pelega, ficamos com muitas “pulgas atrás da orelha”. Passou-se muito tempo desde que aprendemos, na escola, sobre a Guerra do Contestado e mesmo que tivéssemos uma vaga ideia de que conhecíamos muito pouco a este respeito, não tínhamos a noção do quanto isso nos faz falta para compreendermos outros aspectos acerca da região onde vivemos e a condição que ela se encontra ainda hoje.

Pensando nisso, conversamos com o educador popular Jilson Souza, integrante do Fórum Regional em Defesa da Civilização e Cultura Cabocla do Contestado, um dos organizadores daquele evento. Ele inicia a sua fala questionando o uso da palavra guerra:

“Primeiro o conceito de guerra: não foi uma guerra, foi um genocídio. Nós não podemos chamar de ‘Guerra do Contestado’. Nós devemos e precisamos chamar de Conflito do Contestado ou Movimento do Contestado.”

Jilson nos localiza no tempo em que tudo aconteceu. “Estamos falando do final da monarquia e início da república no Brasil. No sul, especialmente, acontecia um movimento conhecido como do colonato independente. Ou seja, após a libertação dos negros escravizados, parte dos imigrantes europeus que começavam a chegar nos estados do Sul, passaram a trabalhar nas grandes propriedades como arrendatários, sendo explorados pelo latifundiário. Estas primeiras levas de imigrantes europeus, no final de 1890, 1900 e 1910, acabaram produzindo uma política de branqueamento do interior de SC.”

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DISPUTA PELA TERRA

Havia uma movimentação em torno de três monges: João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus e José Maria. Na época, eram poucos os padres que circulavam pelo interior. José Maria ficou conhecido como Monge Guerreiro, pois ele se junta aos desplazados (termo em espanhol que denota aqueles que foram arrancados do seu lugar de origem), aqueles que foram tirados da terra pela Brazil Railway Company, que construía, à época, a Ferrovia São Paulo – Rio Grande do Sul, que cortava o interior de Santa Catarina.

Entre as empresas pertencentes à companhia estava a Lumber (na etimologia, lumber significa derrubada de árvores). As pessoas que seguiam o monge começaram, então, a formar o primeiro agrupamento de resistência, ou cidade santa, como seriam chamados, em Taquarussu do Bonsucesso. Este é o contexto político e social que vai dar origem ao Conflito do Contestado.

O motivo central para o conflito foi a disputa pela terra. Em troca da construção da Ferrovia, o governo brasileiro e o governo do estado de SC deram para a Brazil Railway e ao seu proprietário, Percival Farquhar, o direito de explorar o que ele quisesse numa margem de 15 km à direita e à esquerda da ferrovia. Percival construiu também Madeira-Mamoré, no Norte do país, (onde hoje fica o estado de Rondônia). Nessa margem de 30 km era permitido fazer tudo, inclusive matar.

Junto com a força dos coroné (expressão que Jilson usa para definir os donos das terras) da região – e eram várias famílias em Campos Novos e Curitibanos que detinham o poder político – eles forneceram vaqueanos, jagunços, neste contexto, sinônimos. Eles iam até os caboclos e caboclas e davam um ultimato: “ou vocês se mudam daqui ou nós vamos matar”. A grande maioria dos caboclos resolveram resistir e uma outra parte, também considerável, decidiu seguir José Maria no primeiro ajuntamento, na primeira cidade santa que é Taquarussu do Bonsucesso.

Jilson nos lembra que a relação com a terra que o caboclo e a cabocla mantinham não era a relação de posse, mas de pertença: “O umbigo deles está enterrado ali. A terra é pachamama, é a mãe. E o capital invasor que estava chegando, mais as primeiras levas de imigrantes… Eles têm a posse, têm um título, um papel que diz que a terra lhes pertence.”

TAQUARUSSU DO BONSUCESSO

A primeira batalha do Contestado acontece nos campos do Irani. Porém, o berço do conflito é o Taquarussu (naquela época pertencente a Curitibanos) porque é ali que surge o primeiro ajuntamento, a primeira cidade santa e isso começa a incomodar os coronés da região.

O coronel Albuquerque, por exemplo, estava desconfortável porque o ajuntamento se ergueu nas terras dele. Segundo alguns relatos, ele mandou chamar o monge José Maria para curar a sua filha. O monge não se negou a curar a moça, a partir dos seus conhecimentos. Para alguns, eis o motivo último para que os caboclos criassem o reduto santo no Irani.

Se a gente for lembrar essa figura do coronelismo como elemento da política brasileira, podemos observar que isso acontece no período entre a monarquia até 1930, com a chamada revolução de 1930 e a criação, em 1937, do Estado Novo. Os monarcas davam este título pelo voto de cabresto.

Os títulos de coronel e capitão eram dados aos homens que tinham muita terra e tinham, com isso, a possibilidade de terem suas milícias armadas. Por isso, pela força da posse da terra e pelas forças das armas eles recebiam este título antes da República.

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Gualberto

INÍCIO DO CONFLITO

O Exército Brasileiro e a Polícia Militar do Paraná promoveram, no dia 22 de outubro de 1912, um ataque ao reduto santo do Irani, onde aconteceu a primeira batalha resultando em 21 pessoas mortas. Entre elas, o monge José Maria e o coronel João Gualberto, líder das tropas paranaenses.

Os restos mortais de José Maria continuam no Irani e os de João Gualberto estão em um suntuoso mausoléu, em Curitiba. Para a historiografia oficial, João Gualberto é um herói que combateu fanáticos e jagunços, que são as palavras pelas quais chamam o homem e a mulher do contestado.

De acordo com os relatos do professor Jilson, “as forças de segurança vão massacrar, promover genocídio aos caboclos em nome da propriedade privada. Os meios de comunicação da época reportaram que elas combatiam um grupo de fanáticos ignorantes e perigosos que lutavam pela monarquia cabocla. Não a velha monarquia, mas uma sociedade onde pudessem partilhar o pouco que tinham. Era esse sentimento de partilha que as forças de segurança vão tentar combater.

Eles combatem o modo de vida, o jeito de se organizar. Na visão deles era perigoso porque era baseado na solidariedade. Alguns autores chegam a falar que nos redutos santos se vivia o comunismo primitivo, ou um comunismo caboclo. Eles estavam combatendo um jeito diferente de viver, que ia contra a propriedade privada.”

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Operários – Tarsila do Amaral

FORMAÇÃO DO POVO CABOCLO

As caboclas e os caboclos do contestado são formados por diversos grupos sociais e étnicos. A base desta formação são as seis nações indígenas que habitaram esse chão: araucanos, botocudos, kaigangs, xoklengs, guaranys e coroadas. Então essa é a parte que Jilson acredita ser a principal. A segunda parte são os negros que foram trazidos em 1642 por Juan de Salazar y Espinosa, um espanhol que depois fundou Assunción (Paraguai).

Esses negros mais tarde vão se organizar em quilombos. Se pensarmos o território do contestado até o Rio Canoas, em Lages vai ter quatro quilombos: o Canudinho, em Lages, a Invernada dos negros, entre Abdon Batista e Campos Novos; o Campo dos Poli, entre Fraiburgo e Monte Carlo, e o Rocio, em Palmas (PR). Isso é também parte do que vai formar o homem e a mulher do Contestado.

A terceira parte desta formação são os brancos – espanhóis, portugueses, e mais tarde os tropeiros. Alguns autores chegam a falar dos remanescentes da República Juliana, do conflito Farroupilha. Isso se passa no final da monarquia, início da República Velha entre 1889 e 1890.

São João Maria

PERSONAGENS

O principal personagem do conflito foi a própria Resistência Cabocla a todas as tentativas do exército brasileiro de massacrá-los. A construção dos vários redutos santos. O aparecimento de Chica Pelega e a liderança de Maria Rosa. Além destes, as lideranças caboclas, as de guerra e as religiosas.

Maria Rosa vai liderar em Caraguatá. Era liderança religiosa, uma menina que tinha visões do monge e que não se furtava de ir ao campo de Batalha. Chica Pelega vai se juntar ao Reduto Santo Taquarussu do Bonsucesso, depois da Batalha do Irani. Eles queriam o direito de viver na Terra que pertencia a eles e a elas de forma digna, queriam ter o direito de ter o que comer.

O CONTESTADO NÃO ACABOU

O Conflito do Contestado não acabou porque há dados econômicos que indicam isso. Fraiburgo tem, segundo dados de 2010 (IBGE), uma população de 34.530 pessoas, 36,8% pobres. Em Timbó Grande, são 7160 habitantes, 41,56% pobres. Em Calmon, 3387 pessoas, 43,47% de pobres. Lebon Régis, 11838 habitantes, 38,70% pobres.

Esses números se apresentam no estado com o terceiro maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Enquanto isso, Calmon, Matos Costa, Timbó Grande, Lebon Régis, Fraiburgo, apresentam IDH comparado aos municípios que mais sofrem com o flagelo da seca no nordeste brasileiro. Estes foram palco de batalhas e onde se instalaram redutos de resistência à antiga guerra (ou conflito, como Jilson prefere chamar).

Tem outro aspecto ainda que eu gosto sempre de refletir. A Guerra do Contestado não acabou, porque muitos dos remanescentes dos caboclos e caboclas, são mão de obra barata para desenvolver o capital dos descendentes dos coroné, que outrora oprimiram e mataram seus bisavós e tataravós.

O Reduto Santo de Santa Maria – o último reduto, onde aconteceu a última batalha – chegou a ter 5532 casas e 17 Igrejas, de acordo com dados oficiais do Exército. Porém, não sabemos como essa gente se organizava, em termos de comida, segurança, convivência ou quais eram as leis que regiam essa convivência.

De acordo com Jilson, os imigrantes – ou descendentes – querem contar a história da nossa região a partir da imigração e ele diz que não é o caso de esconder a história dos italianos, alemães, poloneses, austríacos, franceses e outras nacionalidades que aqui se instalaram. Ao contrário disso, ele pontua que seria mais justo que a história oficial assumisse que eles vieram para cá porque os ancestrais deles estavam sem saída no velho continente.

O professor conclui que quando não se preserva o patrimônio e a memória material e imaterial da civilização e da cultura Cabocla, é esse exemplo que querem apagar. Ele lamenta, dizendo que é isso que querem destruir, é isso que querem esconder. Que a nossa região foi palco de um dos principais conflitos sociais e luta pela terra que já houve.

“A partir de julho de 2019, a nossa região deixou de ser chamada Vale do Contestado e passou a se chamar Vale dos Imigrantes. Eu estou falando de uma das políticas públicas mais terríveis que é o branqueamento do interior catarinense.”, finaliza Jilson alertando para uma guerra que ainda não acabou.